A sombra do cristal



la estava sentada á penteadeira, observando seu próprio reflexo, não conseguia reconhecê-lo, mas era seu próprio rosto que estava ali, o mesmo que estava naquele retrato antigo, sobre o móvel agora empoeirado pelo ambandono. Lucilia, de olhos marejados, insistentes por uma emoção que não tinha mais no peito, não destilava lágrimas, não mais. Era algo mai metálico e desconfortável, que forçosamente não refletia mais, agora sim... fosse ela agora a ocupar aquela voz que repetia sempre o mesmo nome, e o pensamento que encarcerou eternamente o mesmo rosto, não são mais qualidades de uma vida. O tempo leva tudo, não leva, porém a sinceridade contida na alma... continua...
Precisava partir naquele instante, o seu dever a esperava, cumprir alimentar o que por imperícia a devorasse por completo, o que lhe restasse de si, mas o que lhe importava? Ainda se esforçava por lembrar o que ainda a impulsionava, se não lhe restava nada, ou desconhecia o que sentia, não tinha nome, não naquele instante, naquele dia descobriria, então saberia, enfim, seu destino tornaria as rédeas ás mãos ao invés do abismo...continua...
Não queria fazer comparações com coisas cotidianas da vida, não seria e também parecia, um sopro num castelo de cartas, analogismo perturbador que traduz na praticidade a fragilidade de algo que deveria ser forte, e não é.... Seria abandonar e não, depender e não, então sentir e estar sem sentido ou direção, como quiser! Ela caminhou até a rua vazia, de uma madrugada quente, neste lugar tão familiar, neste mundo análogo ao seu agora, são pessoas enfim ilhadas nos seus egos a construírem suas vidas ilusórias, idealizadas... Desculpe Lucília, mas não preciso mais de você, eu vim vê-la para desfazer este engano, de que há certo grau de amor, que não deveria estar acontecendo, porque não pertence mais a este mundo feito de matéria, mas a um passado, como reminiscências de algo que acabou, junto com a vida que tinha no passado. O desprendimento está fora do lugar, projeta isso para o agora com relação aos sentidos, porque são apenas sentidos que se vão conforme os fatos incidem e o que permanece é o que está em si, que continua, não devia prender-se assim a mim... diga adeus ... não era isso que você queria?... continua...
Esta voz não lhe saía da lembrança, mas eram ecos que permaneciam naquele lugar, e não faziam mais parte de seu mundo, agora em sua existência havia a inércia definitiva ao tempo...
Olhou pela janeja e viu que era o momento de partir, nestes lapsos onde imergia na busca de algo que restou de sua vida humana, na rua, lhe esperavam para mais uma noite de caça, a sustentar seus instintos, de uma certa forma, pela compreensão distorcida de um deleite crescente e devastador dentro de si...
Na calçada seus passos eram os únicos que ouvia, no silêncio de uma noite de lua nova, seu lado negro também exposto, seus olhos perfuravam o negrume das ruelas estreitas que serpentiavam pela rua principal, a única iluminada pelos postes de lâmpadas amarelas que pareciam fazer brotar do chão o que restasse de seus convíveres costumeiros das noites de solitária caminhada. Na próxima esquina seu destino, recostado na perede do prédio parecia distraído, ela aproximou-se enquanto ele, imóvel absorvia a brisa fresca, um cheiro úmido de uma chuva eminente se fazia, e o som dos passos de Lucília, o fez mudar a postura e recebê-la apenas com um olhar de desaprovação pela demora.
- Distraiu-se hoje?
- Como sempre caríssimo, minhas reflexões e lapsos...
- Não se canse. - enlaçando sua cintura e acariciando o rosto dela com o polegar - ainda tens muito a fazer, acompanhe-me.
Saíram a passos mais rápidos, Chronos tinha planos mais ousados aquela noite, Lucília previa situações de onde não retornaria, o que explicaria sua imersão em seu passado, de modo tão repentino, talvez, presumia, uma despedida do que restou de sua passagem pela terra... continua...

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